domingo, janeiro 01, 2006

Nada mudou em mim...



Então eles disseram-me que um novo ano acabara de nascer. Nada o fazia prever. Não desde que deixei de usar o calendário para prever o futuro e a contar pelos dedos os dias que passavam. Mas os dedos acabaram e eu deixei de querer acompanhar de perto a marcha fúnebre do tempo. Até que todos se ergueram de um pulo e entre cânticos de celebração e palavras ininteligíveis de esperança e de renascimento, estenderam as taças ao céu como se pretendessem embriagar os deuses no seu lugar, para que todos os seus desejos fossem miraculosamente concedidos por engano.

Não é justo colocar tamanha responsabilidade num ser que ainda agora acaba de nascer. Não é justo que seja ele o único incumbido de reter todos os males que ameaçam desabar sobre nós, cuja única missão será castigar-nos pela nossa inércia, pelo nosso estranho hábito de nos sentarmos tranquilamente, enquanto permitimos que as oportunidades se escapem por entre os dedos. E nós sorrimos, tranquilamente do cimo do nosso trono de palha consumido pelas chamas, esperando que o destino as devolva ao nosso curto alcance num dia em que nos sentirmos mais dispostos para as abraçar.

Quantas ruas percorremos e quantos passos foram já dados antes de nós? Em cada pedra de cada calçada de cada cidade de cada país, milhões de palavras foram soltas em tempos idos de guerra e de paz, ateando fogos de discórdia, lançando sementes estéreis de amores esquecidos, projectando vidas no infinito que parecem agora mais distantes que nunca, como se o tempo se atrevesse a correr mais depressa e a luz não fosse mais que uma doce memória, levada por instantes longos demais, tão longos que o pensamento se transformasse em esquecimento e os anéis fossem misturados com as lágrimas de uma fria madrugada que o nascer do sol não conseguiu apagar.

A memória é um ser frio e calculista, trazendo lembranças em todos os momentos em que preferíamos esquecer. Se agora durmo em cama estranha é porque a memória dorme também comigo. Se os dentes rangem agora de frio enquanto abraço um corpo estranho é porque estranho sou eu neste momento sombrio. Mas então porque deixou o meu corpo de me obedecer de repente? Porque não se erguem as minhas pernas e me levam para fora desta casa estranha onde não me recordo nunca de ter entrado? Porque insisto em abraçar este corpo estranho que jaz deitado a meu lado sem que a sua companhia eu tenha alguma vez solicitado?

Porque as contas que faço entre as badaladas de renascimento e os primeiros raios de sol de um novo ano são feitas de novo álcool e beijos trocados por acaso. Porque o passado não tardou em se fazer presente, recusando-se a transformar-me num mártir diluído pela saudade. Não ouvi os suspiros que ecoavam pela divisão, não escutei todos os ébrios desejos momentâneos. Questiono a sinceridade do meu coração, enquanto amaldiçoo as vontades do meu corpo. O que me trouxe hoje aqui apenas Deus se recorda e o líquido colorido não pode ser explicação para tudo. Um duelo desigual foi travado entre o que não tenho e o que me é oferecido. E quem saiu derrotado foram unicamente os velhos princípios.

Não trago esperança a ninguém porque para mim não reservo nenhuma. Transformei-me no animal que mais temia e esqueci todas as vozes que trazia dentro de mim. Abri o peito sem pudor e fechei todas as chagas que me cobriam em nome de um único e breve instante de calor. Os erros que cometi parecem agora tão presentes... Mas porque vende um homem a própria alma por um vestido justo cuja cor já nem me recordo? Não me tentes domesticar porque nem a mim obedeço. Mas hoje se inicia um novo ano, e com ele, esperemos que também um novo começo.