terça-feira, julho 19, 2005

O sentido da dúvida



A cidade dos perdidos fervilha de emoção e movimento nestes loucos dias de celebração. Os velhos correm de um lado para o outro atarefados com os últimos preparativos, as mulheres agitam-se num frenesim desgarrado como se o amanhã fosse apenas um sonho distante, ameaçando nunca chegar. A notícia espalhada, tão célere como o próprio vento, tomou em menos de nada a perversa forma de furacão. O novo imperador aproxima-se. Tudo deve estar perfeito ao primeiro, segundo e terceiro olhares. Nada deve ser deixado ao acaso. Sua majestade não o consentiria.

Ao longe ouve-se agora o trovão que agita as nossas frágeis fundações, sacudindo tudo à sua passagem, vergando deuses, semi-deuses e seres menores num espectáculo deprimente de veneração expontânea sem mestre sentido ou aparente sério prazer. Eis que entra em cena no alto de todo o seu esplendor sua real esperança, mestre dos sentidos inertes, senhor das histórias de amor esquecidas. Apolo de mulheres feridas. Afrodite dos homens dementes. Seus olhos alcançam o desejo mais recôndito. Seu pensamento vagueia sobre o deserto mais agreste.

Um machado que quebre o gelo. É apenas o que peço aos rostos fechados da multidão que observam a parada de movimentos mecânicos, ensaiada vezes e vezes sem conta. Cada passo, cada gesto, cada olhar, um sentido único gravado como ferida aberta na mente de cada falso crente. E a distância que os separa, uma nova aliança celebrada com o sangue dos infantes perdidos em rio de prata. Um livro aberto ao velho futuro há muito prometido, escrito em linhas invisíveis por mãos trémulas, dormentes. As crianças de hoje são agora cobertas pelo antigo pó lunar, adormecendo-as, levando-as para longe num sono profundo, distante, de que só a sombra de uma imitação de felicidade as poderá despertar. Mas a certeza encontra-se ausente, há muito esquecida numa memória sepultada num qualquer canto do mar.

A dúvida é a última fronteira que nos separa do agora e do depois. Depois do vento se cansar. Depois do mar arrepiar caminho. Depois da terra esquecer os seus filhos perdidos. Depois de um novo começo em que o relógio marcará apenas os batimentos do coração. E nesse momento nem ditadores, reis ou imperadores nos poderão impedir de livres percorrermos planícies, montanhas e vales. Procurando o fruto proibido que saciará a nossa fome de vida e liberdade. Enfim revelada. Enfim conquistada. E a dúvida transformada em conto de fada. Vilã de uma geração de filhos de um deus menor.

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