domingo, setembro 25, 2005

Quando os olhares se encontram



Ele tentava acordar de um sonho amargo que o deixara náufrago num mar de dúvidas. Era jovem e idealista. Sabia bem o que queria e quando assim não era, ágil saltava por cima de todos os “ses” e “porquês”. Sentia próximo de si o brilho das estrelas. Tão próximo que muitas vezes quase perdera todos os sentidos tentando tocar-lhes apenas com a pele nua. Mas ele era forte. Tão forte que conseguia encontrar energias que desconhecia ter e manter o rumo quando isso parecia impossível. Não era perfeito. Muito longe disso. Mas acima de tudo acreditava em si. Tanto que por vezes voava tão alto que se esquecia de voltar. Era um aprendiz dos contos de fada, um romântico sem cura nem motivo. Mas recusava-se a lançar os dados no jogo da sedução. Simplesmente por não conseguir encontrar a palavra “amor” por entre as regras. E ele acreditava na palavra. Acima de tudo.

Um vez conheceu uma menina. Uma menina linda, que irradiava uma luz intensa, capaz, sem qualquer esforço, de fazer corar qualquer estrela mais afoita. E ela voava livre, com as asas feitas dos sonhos despedaçados, perdidos de mão em mão, que ela insistia em guardar num baú de memórias, como pequenos tesouros roubados um dia pelo destino matreiro. Mas ele, de tão distraído que era, não reparou na menina. Apenas lhe dirigia um “olá” seco, que de tão leve e imperceptível parecia não existir. E ela seguia o seu caminho, ainda presa a medos e dúvidas, não se importando com o desprezo do rapaz. Ela tinha o mundo nas mãos. Podia ser tudo o que quisesse. Apenas não o sabia.

Até que num dia de sol como hoje, sem querer, sem que nada o fizesse prever, os dois cruzaram o olhar. Foi tudo muito rápido. Apenas uns breves milésimos de segundo. Mas o suficiente para um raio incandescente atingir o coração desprevenido do rapaz, que não compreendia as mudanças que começaram, naquele brevíssimo instante, a operar-se dentro de si. E a menina passou a habitar o seu pensamento, sem sequer pedir licença. E ele recusava-se a desalojá-la. Não o podia fazer. Nem que quisesse. Porque ela falava-lhe de palavras simples que habitavam dentro dela. E ele imóvel escutava-a atento. Sem dizer nada ou fazer qualquer movimento. Receando que qualquer interrupção levasse a menina a querer partir.

Mas a mente do rapaz não era mais que um pântano escondido pelas brumas, areia movediça onde apenas as palavras correm soltas. Por isso a menina tentava escapar. Sentia-se descontente naquele ambiente e acusava o rapaz de a aprisionar sem ter em conta a sua vontade. E ele queria libertá-la. Não que deixá-la partir fosse o seu desejo. Mas apenas porque queria vê-la feliz, correndo pelos campos, livre como sempre fôra.

Numa noite a menina gritou. Gritou bem alto. Sentiu-se presa, encurralada, sem saída. E um enorme “não” ecoou pelos caminhos poeirentos que a rodeavam, provocando fissuras na madeira e no vidro, enquanto um beijo seco ameaçava consumi-la e um corpo fétido dominado por uma mente dormente tentava apoderar-se dela. Mas o rapaz não foi capaz de escutar o apelo surdo. Ele encontrava-se demasiado longe, mais do que gostaria. Demasiado longe para ver mais um sonho despedaçado. Porque ele amava a menina das palavras simples. Mas não foi capaz de acordá-la do pesadelo matinal. Encontrava-se perdido nas certezas que a menina insistia em não ter. Mas ele não queria certezas. Apenas a menina com todos os seus medos e dúvidas. A doce menina que dele fugia a cada gesto, a cada olhar. A menina que vivia num mundo onde ele apenas esperava a autorização para entrar.

Hoje a menina ainda vive na sua cabeça, apesar de ele o negar. Ele já não quer a menina, apesar de ainda a querer. E ela finalmente corre livre, longe de todos os corpos fétidos e mentes dormentes. Num local belo onde ele agora sabe nunca poder entrar. Mas o seu pequeno coração ainda balança quando, do lado de fora, consegue ver, por entre uma fresta minúscula, a menina sorrir e dançar. No entanto, as palavras continuam a não deixar a sua boca. Porque o medo de a aprisionar é maior que o amor que ele ainda sente por ela...

Posted by Picasa

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Às vezes é mesmo assim: dois olhares que se cruzam, uma vez apenas, para nunca mais se encontrarem... são estas as contrariedades da vida!!!
Até breve...
*Alma de Sonho

4:34 da tarde  
Blogger Eu said...

Thanks. É sempre bom receber feedback. Bjinhos ****

11:04 da tarde  

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