terça-feira, agosto 30, 2005

Conta-me os teus sonhos

Ontem à noite sonhei
Sonhei que os peregrinos voltavam para ocupar as casas que eu tentava construir
Sonhei que entravam pelas janelas, pelo telhado e pelas paredes porque eu esqueci de construir as portas
Sonhei que roubavam os meus sonhos e que deles tomavam posse como se os tivessem na cabeça durante uma vida inteira
Que alteravam a história que eu criei para mim. Que mudavam o princípo, o meio e o fim
Sonhei que os peixes voavam bem alto no céu infinito e que os pássaros nadavam contra a corrente do meu pensamento
Sonhei que os dias se tornavam noites e que as noites se esqueciam de existir
Sonhei que os filhos do amanhã se tornavam nos moribundos de hoje
E que o amor deixava de respirar apenas por preguiça, cansado de esperar
E que o coração deixava de bater por não encontrar o ritmo a que bate o teu
Diz-me onde estás e eu dir-te-ei onde vou

quarta-feira, agosto 17, 2005

Esses teus olhos

Esses teus olhos são o campo verdejante onde a minha imaginação gosta de passear
São mar calmo e sereno onde os meus sonham um dia naufragar
Esses teus olhos são brisa quente soprando em noite de Verão
São as pétalas frágeis de uma rosa selvagem e as portas entreabertas para o teu coração

Esses teus olhos são o meu maior pecado, tormento e desejo
Não feches os teus olhos, porque se os fechares eu já nada vejo
Esses teus olhos dormem comigo, mesmo estando acordado
Um dia vi uns olhos como os teus, mas esses já não importam, já se foram, são passado

Esses teus olhos são o rio que corre bem dentro da minha alma enfim liberta
São asas de um anjo belo que me levam para parte incerta
Esses teus olhos voam bem alto, num lugar para onde espero que me possas levar
São o descanso merecido onde eu, viajante perdido posso enfim repousar

Esses teus olhos são rosa, alfazema, tomilho e alecrim aos molhos
São o reflexo das estrelas que deixaram de brilhar
Porque as estrelas não podem brilhar mais do que brilham os teus olhos




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terça-feira, agosto 09, 2005

O Cinzas

[...]
Depois de ter escapado de ser servido como prato principal, o Cinzas, ainda bastante assustado com o que lhe tinha acabado de acontecer, não teve outro remédio senão voltar a vaguear pelas ruas da grande cidade. Embora revoltado e triste com as partidas que o destino insistia em pregar-lhe, o cachorrinho convenceu-se a todo o custo que um dia iria encontrar a felicidade que merecia. “É impossível que num mundo tão grande como este não exista alguém sensível e com bom coração capaz de amar um animal meiguinho como eu...Vou percorrer todas as ruas, todos os becos, todos os lugares até encontrar alguém que me queira”, pensou confiante, mas ao mesmo tempo tentando convencer-se daquilo que estava a dizer.

Enquanto pensava foi andando, andando, andando, até que reparou que estava numa parte da cidade um pouco diferente de todo o resto onde já tinha estado. Ali tudo era escuro e feio. Havia muitos caixotes de lata e lixo espalhado por todo o lado. As casas estavam degradadas e muitas delas sem habitantes, com tábuas de madeira tapando as portas e as janelas, que escondiam o seu interior que, para o Cinzas, não parecia muito convidativo. “Que sítio feio!”, exclamou. “Será que alguém tem coragem suficiente para morar aqui? Aqui só deve viver gente má e feia”, pensou. “Mas que tonto sou! Não posso julgar as pessoas pela aparência, nem sequer pelo modo como vivem. Se calhar ainda vou encontrar alguém bondoso por aqui”, disse para si mesmo o corajoso cãozinho.

Assim, ao remexer numa lata de lixo em busca de comida, o Cinzas reparou que o conteúdo se começava a mexer. Com medo, deu dois passos atrás, mas a curiosidade e a vontade de saber o que seria aquilo, impediram-no de fugir. A lata começou a abanar e a abanar cada vez mais até cair no chão com grande estrondo e do seu interior saltou uma figura da qual a mamã já lhe tinha falado em tempos, mas que ele nunca tinha visto na vida. “Que queres meu?? Interrompeste-me o sono bacano! Bem me parecia que me tinha cheirado a cão. Agora vou ter que te dar no focinho. Deixa-me só arranjar um bocado de madeira pa afiar as garras”. Era um gato. Um gato preto com várias cicatrizes espalhadas pelo corpo e uma ferida ainda aberta no focinho, provavelmente resultado de uma luta recente, sinais de que a vida lhe era madrasta.

- Espera!! Porque me queres dar no focinho?? Que te fiz eu??
- Ainda perguntas chavalo? Pra já acordaste-me do meu rico soninho. E depois porque és um cão. Só isso já chegava pra te dar uma valente sova.
- Não percebo... Queres bater-me só porque sou um cão?? Porquê??
- Ahn... Sei lá... Sempre me ensinaram que os cães e os gatos andam sempre à bulha. Sinceramente nunca perguntei porquê...
- Mas eu não quero... como é que disseste?
- Andar à bulha (o puto é mesmo inocente... – entredentes)
- Isso. Eu não Quero andar à bulha contigo. Nem contigo nem com ninguém. E muito menos por uma razão tão parva.
- Não queres? Tu és mesmo estranho. Todos os cães com quem me cruzei sempre me quiseram dar porrada.
- Foi assim que arranjaste essas feridas?
- Pois... Mas então que queres fazer?
- Podemos sempre ser amigos.
- Amigos??? Um cão e um gato serem amigos??? Isso é impensável!!! É inconcebível!!! É a ideia mais parva que eu já ouvi!!! É... Olha que nem é má ideia.
- ...
- Então que vamos fazer primeiro... amigo?
- Primeiro é melhor tratarmos dessa ferida. Quando eu me magoava a minha mamã costumava lamber-me para eu não sentir dor.
- Ei!!! Vê lá o que fazes!!! Ei! Ei! Tá a arder!!! Ai caraças!!
- Pronto. Já tás melhor?
- Eh pah. Muito bem feito, sim senhor. Já tou porreiro. E agora? Que fazemos?
- Não sei bem... Eu andava à procura de comida. Sabes onde posso encontrar?
- Miúdo, não vás mais longe. Este é o teu dia de sorte. Tenho aqui uma espinha de peixe fresquinha, atirada para o caixote esta manhã pelo velhote que mora ali na esquina. Material de primeira categoria. Que achas?
- Uma espinha de peixe?? Que nojo...
- Não gostas? Mais fica. Nham, Nham.
- Bem, sempre é melhor que nada.

E a custo o cãozinho lá lambeu o que ainda restava do estranho petisco.

- Tava porreiro, não tava?
- Não tava mau. Mas olha, eu ainda nem sei o teu nome...
- A malta chama-me Peças. É porque dizem que eu sou uma rica peça. Ah! Ah! Ah!
- Peças?? Que nome engraçado.
- Tás a gozar é? E o teu? Como é?
- Cinzas.
- Pois... Deixa-te tar que o teu é muito melhor... Ah! Ah! Ah!
- Mas porque é que andas na rua?
- É a vida. Nunca tive donos. Acho que por ser preto ninguém me quer. Algumas pessoas até tentam dar-me pontapés quando passo à frente deles. Enfim... Vá-se lá entender os humanos. E tu? Que fazes sozinho?
- Eu? Eu perdi a minha mamã e os meu irmãos foram todos adoptados menos eu... Acho que também ninguém me quer...
- Deixa lá. Agora temo-nos um ao outro. Quem é que precisa de donos afinal?
- Acho que tens razão... Vamos ficar juntos para sempre!!!

E assim foi. Desde aquele dia os dois amigos nunca mais se separaram. Partilhavam a comida que encontravam ou que roubavam das cozinhas dos restaurantes, passeavam por toda a cidade e à noite dormiam enroscados um no outro para não terem frio. Até que um dia, quando andavam desprevenidos pela rua, um homem estranho cruzou a esquina e barrou-lhes o caminho.

- Mas que é isto? Um rafeiro sem coleira? Maravilha! É mais um que vai acabar no canil. Anda cá canito. Vamos dar uma volta.
- Olha Peças! Acho que este senhor simpático gosta de mim.
- Tás parvo?? Ele quer é levar-te para o canil como os outros cães!!
- Quer levar-me para brincar com outros cachorrinhos? Tão bondoso...
- És mesmo cromo... Quer prender-te pah!!! Vê se atinas. Corre!!!

E começaram os dois a correr rua abaixo, perseguidos pelo homem do canil que bradia no ar a sua rede. “Malditos animais!! Fazem-me sempre correr. Porque é que não segui o conselho da minha mãe e me tornei escritor...?”, dizia. “Vamos esconder-nos neste beco!”, sugeriu o Peças. E esgueiraram-se, ágeis como o vento, refugiando-se por detrás de uns caixotes de madeira. “Ufa... Foi por pouco...”. “Pois foi... Ele tava mesmo decidido a apanhar-te. Mas os humanos são muito parvos. Deixam-se enganar tão facilmente”.

Subitamente uma sombra enorme cobriu os dois animais sem que eles dessem por isso. “Então vocês, seus malandros, julgaram que me podiam escapar?? Tu vens comigo rafeiro!”. E lançou a rede sobre o pobre Cinzas, aprisionando-o sem hipóteses de fuga. “Peças!! Para onde é que ele me leva??”. Para o canil!! Já te tinha dito!!”. “Mas eu não quero ir!! Socorro!!!”. E o homem atirou o Cinzas para a carrinha, sentou-se no banco da frente e arrancou em direcção ao canil. Ao chegar agarrou-o pelo colarinho e trancou-o numa das muitas celas da masmorra. “Espero que gostes da tua nova casa! Vais passar aqui muito tempo! Ah! Ah! Ah!”, gritou o homem. “Que me vai acontecer? Porque me trouxeram para cá? Eu não fiz nada de mal...”, questionou o cachorrinho. E começou a choramingar baixinho para que as sombras que enchiam a cela não o conseguissem escutar. “Calma miúdo. Não é assim tão mau.”. “Quem és tu?? Nem tinha reparado que estava alguém aqui...”. Era um dálmata. Muito maior que o pequeno Cinzas, aparentando já ter alguma idade.

- Não faz mal. Chamo-me Sardas. Estou aqui há... Olha, já nem me lembro há quanto tempo...
- Muito prazer. Eu sou o Cinzas. Mas como é que vieste cá parar?
- Bem, apanharam-me a fazer as minhas... necessidades num marco do correio e lançaram-me a rede. Já não há respeito pelos mais velhos. Enfim... E tu? Que fizeste para te trazerem para aqui?
- Não sei bem... Ia a passear pela rua com o meu amigo Peças e aquele homem mau trouxe-me para cá. Não sei porquê... Não lhes fiz mal nenhum...
- É sempre assim. Basta andares pela rua sem dono nem coleira que eles não perdoam. Mas diz-me, esse teu amigo... Peças não é? Quem é ele? Um caniche, um pastor alemão...?
- É um gato.
- Um gato, dizes tu?? Bem, isso é bastante invulgar. Os gatos e os cães não costumam ser amigos. Pelo menos não no meu tempo. Ai, ai... estas modernices...

Enquanto conversavam ouviram o som de passos que se aproximava rapidamente. “Que é isto??”. “Não te preocupes. Deve ser o homem que te trouxe para cá. Provavelmente vem trazer-nos o jantar ou então apanhou mais alguém e vem deixá-lo aqui”. No entanto, o Sardas estava enganado.

- Olá Cinzas. Desculpa a demora.
- Peças!!! Que bom ver-te! Que fazes aqui? Também te apanharam?
- Achas que se me tivessem apanhado tava deste lado das grades? O guarda adormeceu e eu aproveitei para entrar pela janela e roubar-lhe as chaves.
- És um grande amigo!! Pensei que te tinhas esquecido de mim...
- Achas mesmo??? E ia deixar o meu melhor amigo em apuros? Cá o Peças não é desses.
- Obrigado! Mas eu sinto-me mal por ir embora e deixar aqui presos todos estes cãezinhos que não fizeram nada de mal como eu...
- Eu sei. Foi por isso que roubei as chaves de todas as celas. Quem é esperto, quem é?
- Boa!! Então vamos despachar-nos e libertar toda a gente antes que o guarda acorde.

E assim fizeram.

- Pouco barulho pessoal. Não ladrem para não alertarmos o cromo do guarda.
- Peças já estão todos cá fora?
- Ya, miúdo. Agora para sairmos é que vai ser uma carga de trabalhos...
- Pensei que tinhas um plano!
- Para um gato é fácil. Nós cabemos em qualquer buraco. Mas como é que se faz com que trinta cães saltem dois metros para alcançar a janela?
- Meu rapaz, posso dar uma sugestão? Que tal se corrermos todos de encontro à porta da entrada de uma vez só? Somos dezenas, a porta é de madeira e não me parece muito forte.
- Boa ideia! Que achas Peças?
- Por mim tá-se bem. O velhote até tem umas ideias jeitosas.
- Velhote?? Cuidado com a língua rapazola! Já venci muitas lutas contra gatos três vezes maiores do que tu quando era novo.
- E isso foi há quanto tempo? Meio século atrás?
- Não discutam. Temos que nos despachar. Estão todos prontos? 1, 2...

Naquele momento o telefone começou a tocar furiosamente em cima da secretária do guarda, acordando-o de um salto e fazendo-o colocar-se mesmo em frente da porta. “Ahn... que se passa?!?”, balbuciou ele confuso e ainda meio ensonado. “...3! Vamos!”, ordenou o Cinzas e, tal como combinado, os cães começaram a correr em direcção à porta e a uma nova liberdade. Quando se apercebeu do que se passava o homem ficou perplexo. “Como é que eles se soltaram?? E porque correm eles na minha direcção?? Socorro!!!”, gritou. Mas os animais não se detiveram e lançaram-se contra o carcereiro, projectando-o contra a porta, que se desfez em mil pedaços. O homem ficou deitado na rua, inconsciente, enquanto todos os cães corriam em todas as direcções, finalmente soltos. “Muito obrigado por tudo o que fizeram por nós meus jovens. Vocês fazem uma dupla invulgar, mas valente. Muito, muito obrigado”, agradeceu o Sardas e partiu também ele.

- De nada! Espero um dia voltar a vê-lo!
- Andas Cinzas. Vamos arranjar qualquer coisa pa comer. Tou com um larica... Estas macacadas dão-me fome...

E assim, o Cinzas e o Peças voltaram à sua vida normal. Mas desta vez com mais cuidado com os homens do canil. Até que uma dia, quando passeavam pelo parque, viram uma menina loirinha de olhos azuis, que chorava no colo da mãe.

- Tadinha da chavala... Que lhe terá acontecido?
- Não sei...Mas a mãe parece estar a ter dificuldades em acalmá-la.
- Achas que devíamos ir até lá pa saber o que se passa?
- Acho que sim. Vai lá tu.
- Porquê eu??
- Porque tu tens um... charme irresistível.
- Eu???
- É o teu poder natural para acalmar as crianças. É por teres o rabo mais comprido que o meu. As crianças gostam de o puxar. Hi! Hi! Hi!
- Muito engraçadinho que tu és... Mas eu vou até lá.

E o Peças, devagarinho para não repararem nele, com medo que o enxotassem mais uma vez, aproximou-se da criança. A menina reparou no bichinho que tentava permanecer incógnito e parou, instantaneamente de chorar.

- Olha mamã! Um gatinho igual ao nosso que foi pó céu! Posso ficar com ele?
- Não sei... É um gato de rua... Deve ter pulgas e carraças...
- Oh... vá lá mamã... Eu prometo que lhe dou banhinho quando chegarmos a casa. Ponho-lhe perfume e tudo. Vá lá...
- Tá bem. Mas tens que prometer que tratas bem dele.
- Eu prometo mamã.

E a criança pegou no Peças ao colo muito gentilmente como se segurasse um bebé. O Cinzas surpreendido com tudo aquilo correu atrás do seu amigo.

- Peças!! Onde vais??
- Não sei. Parece que esta menina me quer adoptar.
- A sério?? Mas eu não quero ficar sem ti.
- Não te preocupes. Podes ir visitar-me sempre que quiseres.
- Obrigado. És o meu melhor amigo. Quem me dera ter a tua sorte...
- E vais ter. Um dia... Tens que continuar a acreditar.
- Adeus amigo! Boa sorte!

E o cachorrinho parou de correr enquanto observava, já ao longe, o seu amigo ser levado para dentro de uma luxuosa mansão pela mão da menina. O Cinzas, triste por ter voltado a ficar sozinho, começou a andar sem destino. Já se tinha esquecido de como era estar só. Há tanto tempo que não sentia aquela sensação que já não sabia muito bem o que fazer. Então andou, andou, andou, pensando na sua vidinha, até que olhou à sua volta. Onde estavam as casas, as ruas, os carros, as pessoas?? Ali só havia árvores e mais árvores. Estava habituado ao barulho e à confusão da cidade e ali havia um cheirinho que nunca antes tinhas sentido. Um odor a campo. Estranho, mas ao mesmo tempo muito agradável. No entanto, não se sentia à vontade. “Onde estou?? Que lugar é este?? Não há aqui ninguém. Perdi-me!! E agora?? Que faço??”, pensou ele aflito. Começava a escurecer. As nuvens cobriam agora todo o céu e a chuva ameaçava cair com violência sobre ele.

“Oh não! Está a começar a chover! Tenho que encontrar um abrigo rapidamente senão vou-me constipar!”. E correu, correu, correu. Como se a sua vida dependesse disso. Até que, por sorte, encontrou uma caverna. “Que escuro! É melhor não entrar...”, pensou. Mas o brilho de um raio e o ronco furioso de um trovão rapidamente o convenceram do contrário. “Aiiii!! É melhor entrar. Antes lá dentro no escuro do que cá fora com esta chuva...”. E entrou na caverna sem pensar duas vezes. Lá dentro, embora a escuridão ainda o assustasse um bocadinho, depressa se deixou vencer pelo cansaço e, fechando os olhinhos, adormeceu profundamente.

No dia seguinte, quando o sol já brilhava lá fora, o Cinzas despertou calmamente. Lentamente abriu os olhinhos e espreguiçou-se com vontade enquanto se tentava lembrar de onde estava. “Onde estou?? Ah pois é... entrei ontem à noite aqui para fugir da chuva e dos trovões... E agora? Que vou fazer?”, pensou. “O que tu vais fazer eu não sei! Mas eu quero-te daqui pra fora! JÁ!!!”, disse uma voz assustadora que vinha do fundo da caverna. “Quem está aí...?”, perguntou o Cinzas tremendo de medo. “Já sei que ontem à noite invadiste a minha caverna! Pensavas que podias invadir a casa dos outros e ficar impune?!?”, respondeu a voz num tom ameaçador. E da escuridão surgiu o ser mais assustador que o cachorrinho já tinha visto na sua vida. Um urso enorme que avançava para ele sem se deter. “Eu sou o dono desta caverna! E tu, meu pequeno intruso, vais pagar! E é já!!!”, disse o urso. “Mas... mas... desculpe...”, disse o Cinzas baixinho, mas o urso não o deixou acabar de falar e, com toda a força, atingiu o cachorrinho com as enormes garras projectando-o para fora da caverna e fazendo-o aterrar na margem de um riacho. “Que isto te sirva de lição!”, rosnou o urso. O Cinzas, bastante magoado e com dificuldades em levantar-se, reparou que estava a sangrar ao ver o seu sangue ser levado pela corrente do riacho. Tentou levantar-se, mas todo o corpo lhe doía. “Não... não percebo... que aconteceu...? Porque é que ele me bateu...? Não compreendo...”. E, sem forças, o seu corpinho frágil deixou-se cair de novo sobre água e fechou os olhos inconsciente. Dormiu durante dois dias seguidos, tal era a sua fraqueza, e sonhou. Sonhou muito. Sonhou que voava com os pássaros, por entre as nuvens, e que o Peças, os seus irmãos e a sua mamã o acompanhavam. Até que sentiu na pele o toque leve de alguém. Sentiu medo, mas não se conseguiu mexer, de tão débil que estava.

Quando finalmente acordou, sem abrir os olhos, reparou que estava deitado, não na água fria do riacho, mas em cima de algo fofinho. Uma cama. Estava em cima de uma cama no meio de uma cabana de madeira. Lá fora ouvia os pássaros cantar e o som de passos que se aproximavam. Encolheu-se temendo que alguém lhe viesse fazer mal. “Já acordaste? Ainda bem. Já começava a ficar preocupada”. Era uma menina muito bonita de olhos brilhantes, cabelo comprido e sorriso luminoso que trazia nas mãos um prato com água que pousou na frente do cãozinho. “Toma. Bebe tudo. Estás muito fraquinho. Espera aqui que já te trago um pratinho com comida. Tens que te alimentar bem para ficares forte outra vez”. O Cinzas estranhou toda aquela bondade por parte da menina. Sempre tinha sido maltratado pelos humanos. Mas agora alguém cuidava dele. Teria encontrado alguém carinhoso que tratava dele sem pedir nada em troca? Aquela pessoa que tinha procurado toda a sua vida? O cachorrinho sentiu o seu coração encher-se de felicidade. “Esta menina é tão boa para mim. Será que gosta mesmo de mim? Oh... Estou tão feliz! Será que finalmente encontrei um dono?”.

Quando a menina entrou no quarto, o Cinzas abriu os olhos para tentar olhar o seu rosto mas... “Que se passa?? Não consigo ver!! Socorro!! Está tudo escuro!!”, gritou. A menina colocou-lhe as mãos sobre a cabeça para o acalmar e afagou-o docemente. “Calma. Ontem à noite estive a examinar-te e, infelizmente, levas-te uma pancada muito forte que te roubou a visão... Espero que te consigas adaptar...”, avisou a menina. “Oh não!!! E agora?? Que vou fazer?? Nem consigo olhar para a menina que foi bondosa comigo... Que infeliz sou...”, lamentou-se e começou a chorar.

O Cinzas teve bastantes dificuldades em adaptar-se à sua nova realidade. Já não conseguia ver o brilho do sol, o nascer do dia, as estrelas brincando no céu... Mas depressa percebeu que tudo isso era secundário. A menina todos os dias lhe dava de comer e de beber, brincava com ele e afagava-o constantemente e aconchegava-o à noite no seu colo para que ele adormecesse e não tivesse medo do escuro. Embora não pudesse ver a cara da sua salvadora, agora o cachorrinho tinha amor. E isso, para ele era o mais importante. E assim viveu feliz, no meio do campo, sempre com a companhia da doce menina, que o acompanhou até ao último dia da sua vida. E o Cinzas pôde finalmente exclamar, por mais do que uma vez: “Finalmente sou feliz...”

FIM

Atitude



Quando te olhares ao espelho e não gostares do que vês lembra-te: não é da tua imagem que não gostas; é da tua atitude.

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