sábado, janeiro 28, 2006

Fim do mito - Início da lenda



Num abraço a dois tempos um compasso de cores. Em minúsculos pedaços de uma madeira estemporaneamente quebrada três cordas vibram ao sabor do vento, dando à luz um som que ecoa por entre as planícies, atravessando vales, mares e montanhas. Consciências, memórias, lugares comuns e inuendos. Uma melodia que acorre aos locais mais profundos de cada alma inquieta, conquistando preces e bandeiras

No casco triunfante de um cavalo ouvem-se os passos cravados a ferro e carvão de um tempo que tarda em alcançar o seu destino. A duas mãos que se unem sem causa ou motivo junta-se o ritmo das palmas brancas cruzadas que aplaudem o último suspiro de um homem. Um inesperado confronto a cinco vozes irrompe pela sala rubra atraindo todos os olhares da plateia incrédula. Mas olhares pintados por uma noite de um verde sereno vivem em silêncio, desejando apenas que a chuva se torne o manto que cobrirá as suas lágrimas

Naquela manhã o mar vestiu-se de branco para celebrar as vidas que desabrochavam a cada suspiro de um novo dia. Mas o manto negro da noite levou para sempre as conversas perdidas e todas as palavras se viram encarceradas em leves bolas de sabão

Pode um homem criar raízes em tempos modernos? Será a razão dos sentidos demasiado lata para que possa ser revelada por um simples fogo de vista?

Agora que seguiste o teu caminho rumo à fria contemplação das memórias assustadas, mil e uma vozes surdas se aprontam para calar a inspiração da tua presença. Mas tu és a fonte da juventude num corpo cansado. Tu és o deus sem voz e a cruz que ousou desafiar a guilhotina do tempo. Tu és a certeza que até os imortais têm um lugar próprio no paraíso

As vidas sem cor, gastas pela luz do sol, seguem o orgulho do seu tempo. Rezemos, então, ao deus das coisas menores, numa oração repetida vezes sem conta para a preservação de todos os defeitos e fraquezas. Entretanto, insistimos em construir castelos de palavras vãs e sem sentido. Mas as palavras desmoronam-se sempre entre aspas

Descansa em paz Imortal...

domingo, janeiro 22, 2006

Fantochada



Bem, hoje é dia de eleições presidenciais. Não vou revelar quem ficou com o meu voto. E também não preciso de dizer em quem NÃO votei , certo? De qualquer forma, o que mais me chateia nestas alturas (para além do bombardeamento excessivo de propaganda eleitoral) é ouvir o povo dizer nos vox-pop "Ah, não vou votar porque nenhum dos candidatos me convence...."
Pudera, num país em que a taxa de iliteracia ultrapassa os 50 por cento (com uma perna às costas), em que o 24 Horas é mais vendido que os jornais de referência e em que programas como "O Prédio do Vasco" e "Os Malucos do Riso" (Júnior, Sénior, da Terceira Idade, nas Arábias, no Espaço, no raio que os parta, não interessa agora...) têm mais audiência que qualquer debate televisivo, alguma coisa está mal. Não é uma questão de capacidade dos candidatos ou de falta dela, de terem ideias interessantes ou não. É uma questão de ninguém saber muito bem o que faz um Presidente da República e, pior que isso, não quererem saber.

Conclusão: se não querem saber de política nem de quem nos representa; se não têm ideias próprias nem se interessam pelo futuro do país; se preferem olhar para o próprio umbigo e dizer mal de tudo o que é político, então deixem de se queixar e comprem uma chucha.

P.S. (post-script e não um partido qualquer...) - Este post é também para não pensarem que eu sou de direita. Lagarto! Lagarto! Lagarto!

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Noite de lua cheia



Off through the new day's mist I run
Out from the new day's mist I have come
I hunt
Therefore I am
Harvest the land
Taking of the fallen lamb

Off through the new day's mist I run
Out from the new day's mist I have come
We shift
Pulsing with the earth
Company we keep
Roaming the land while you sleep

Shape shift - nose to the wind
Shape shift - feeling I've been
Move swift - all senses clean
Earth's gift - back to the meaning of life

Bright is the moon high in starlight
Chill is the air cold as steel tonight
We shift
Call of the wild
Fear in your eyes
It's later than you realized

I feel a change
Back to a better day
Hair stands on the back of my neck
In wildness is the preservation of the world

So seek the wolf in thyself

Shape shift - nose to the wind
Shape shift - Feeling I've been
Move swift - all senses clean
Earth's gift - back to the meaning of wolf and man

Pareceu-me escutar o uivo de um lobo. Mas estamos no meio da cidade... Coisas estranhas acontecem esta noite...
É sexta-feira, dia 13. Noite de lua cheia
O que mais temes?
A lua? Ela é a luz que ilumina o teu caminho em noites escuras, quando todas as outras se extinguem. A melhor amiga e confidente das almas errantes.
O lobo? É o animal mais romântico que já pisou a face da Terra, que apenas mata para sobreviver. Escuta-o uivar à lua e não ouvirás uma ameça, mas um lamento em nome de uma raça perseguida injustamente.
A única coisa que deves temer és tu próprio...

(Of Wolf and Man - Hetfield/Ulrich)

domingo, janeiro 01, 2006

Nada mudou em mim...



Então eles disseram-me que um novo ano acabara de nascer. Nada o fazia prever. Não desde que deixei de usar o calendário para prever o futuro e a contar pelos dedos os dias que passavam. Mas os dedos acabaram e eu deixei de querer acompanhar de perto a marcha fúnebre do tempo. Até que todos se ergueram de um pulo e entre cânticos de celebração e palavras ininteligíveis de esperança e de renascimento, estenderam as taças ao céu como se pretendessem embriagar os deuses no seu lugar, para que todos os seus desejos fossem miraculosamente concedidos por engano.

Não é justo colocar tamanha responsabilidade num ser que ainda agora acaba de nascer. Não é justo que seja ele o único incumbido de reter todos os males que ameaçam desabar sobre nós, cuja única missão será castigar-nos pela nossa inércia, pelo nosso estranho hábito de nos sentarmos tranquilamente, enquanto permitimos que as oportunidades se escapem por entre os dedos. E nós sorrimos, tranquilamente do cimo do nosso trono de palha consumido pelas chamas, esperando que o destino as devolva ao nosso curto alcance num dia em que nos sentirmos mais dispostos para as abraçar.

Quantas ruas percorremos e quantos passos foram já dados antes de nós? Em cada pedra de cada calçada de cada cidade de cada país, milhões de palavras foram soltas em tempos idos de guerra e de paz, ateando fogos de discórdia, lançando sementes estéreis de amores esquecidos, projectando vidas no infinito que parecem agora mais distantes que nunca, como se o tempo se atrevesse a correr mais depressa e a luz não fosse mais que uma doce memória, levada por instantes longos demais, tão longos que o pensamento se transformasse em esquecimento e os anéis fossem misturados com as lágrimas de uma fria madrugada que o nascer do sol não conseguiu apagar.

A memória é um ser frio e calculista, trazendo lembranças em todos os momentos em que preferíamos esquecer. Se agora durmo em cama estranha é porque a memória dorme também comigo. Se os dentes rangem agora de frio enquanto abraço um corpo estranho é porque estranho sou eu neste momento sombrio. Mas então porque deixou o meu corpo de me obedecer de repente? Porque não se erguem as minhas pernas e me levam para fora desta casa estranha onde não me recordo nunca de ter entrado? Porque insisto em abraçar este corpo estranho que jaz deitado a meu lado sem que a sua companhia eu tenha alguma vez solicitado?

Porque as contas que faço entre as badaladas de renascimento e os primeiros raios de sol de um novo ano são feitas de novo álcool e beijos trocados por acaso. Porque o passado não tardou em se fazer presente, recusando-se a transformar-me num mártir diluído pela saudade. Não ouvi os suspiros que ecoavam pela divisão, não escutei todos os ébrios desejos momentâneos. Questiono a sinceridade do meu coração, enquanto amaldiçoo as vontades do meu corpo. O que me trouxe hoje aqui apenas Deus se recorda e o líquido colorido não pode ser explicação para tudo. Um duelo desigual foi travado entre o que não tenho e o que me é oferecido. E quem saiu derrotado foram unicamente os velhos princípios.

Não trago esperança a ninguém porque para mim não reservo nenhuma. Transformei-me no animal que mais temia e esqueci todas as vozes que trazia dentro de mim. Abri o peito sem pudor e fechei todas as chagas que me cobriam em nome de um único e breve instante de calor. Os erros que cometi parecem agora tão presentes... Mas porque vende um homem a própria alma por um vestido justo cuja cor já nem me recordo? Não me tentes domesticar porque nem a mim obedeço. Mas hoje se inicia um novo ano, e com ele, esperemos que também um novo começo.